Quinze questões
para pensar a esquerda:
Boaventura
"Quando confortável no governo, a esquerda engana quem nela confia
e engana-se ao confiar em quem nunca deveria", afirma o intelectual
- Seguem 15 questões importantes levantadas pelo professor para reflexão
à esquerda.
Pluralidade na união
A esquerda vai certamente continuar a ser uma pluralidade de esquerdas
mas a pluralidade tem de saber ultrapassar a fragmentação e articular-se no
respeito da diferença ainda que maximizando convergências e minimizando
divergências. O fortalecimento do fascismo social com fachada
política democrática vai exigir um esforço adicional na busca de
consensos que permitam um novo tipo de frente democrática mas com a mesma
abrangência das frentes populares na Europa dos anos 1930 ante a ameaça do
fascismo enquanto regime politico (e não "apenas" enquanto regime
social como acontece atualmente). É trágico que, em tempos recentes,
tenha sido mais fácil à forças importantes de esquerda (em geral, de
orientação social-democrática ou de centro-esquerda) realizar alianças com
forças de direita do que com outras forças de esquerda. Mas as dificuldades na
concretização de articulações de esquerda não são, em geral, da
responsabilidade de apenas um setor da esquerda. Infelizmente, o sectarismo
tem-se distribuído generosamente. As teses seguintes falam de esquerda no
singular para designar o campo de consensos práticos que devem subjazer às
alianças entre as esquerdas.
Poder para a democracia
A refundação da esquerda exige uma refundação da política concebida
enquanto teoria e prática do exercício e da transformação do poder em seu
sentido mais amplo. O poder é sempre expressão de relações desiguais que
permitem a quem o tem representar o mundo como seu e transformá-lo de acordo
com as suas necessidades, interesses e aspirações, seja esse mundo a família, a
empresa, a comunidade, a escola, o mercado, a cidadania, o globo
terrestre. O poder só é democrático quando é exercido para ampliar e
aprofundar a democracia. No seu sentido mais amplo, a democracia é todo o
processo de transformação de relações desiguais de poder em relações de
autoridade partilhada. Por isso não há sociedades democráticas; há sociedades
que, quando governadas pela esquerda, estão em processo de democratização e,
quando governadas pela direita, em processo de desdemocratização. Governar à
esquerda é ampliar a democracia tanto nas relações políticas como nas relações
sociais. Governar à direita é restringir a democracia nessas mesmas relações.
Zona de conforto
Tanto na oposição como no poder a esquerda deve manter a coerência
entre os meios e os fins. Não há fins honrosos quando os meios para os obter
são vergonhosos. A mesma coerência é exigida entre estar na oposição e estar no
governo. Nas sociedades dominadas pelo capitalismo, o colonialismo e o
patriarcado, a zona de conforto da esquerda é a oposição. Quando no governo, o
desconforto do poder exercido na sociedade tem de ser o espelho do poder do
desconforto no interior da esquerda. Quando confortável no governo, a esquerda
engana quem nela confia e engana-se ao confiar em quem nunca deveria.
Relação com os movimentos
Nas condições atuais, governar à esquerda significa governar contra a
corrente, isto é, governar sem dominar os parâmetros gerais do poder que domina
nas relações econômicas, sociais, políticas, culturais e internacionais. É um
governo que para não ser frágil tem de ser duplamente forte: seguro nas raízes
e musculado nas asas. É um governo que para ser sustentável não pode apoiar-se
apenas nas instituições políticas e jurídicas. Deve saber relacionar-se
organicamente com os movimentos e organizações sociais e mesmo com a ação
direta e pacifica dos cidadãos e cidadãs. Deve, sobretudo, saber que as novas
forças de direita procurarão essa mesma relação pois a mobilização social e a
ação direta não são monopólio da esquerda. Pelo contrário, podem ser as armas
mais eficazes contra a esquerda. Por isso, a esquerda suicida-se sempre que desperdiça
ou negligencia a confiança que em si depositam os movimentos e as organizações
sociais. A confiança fortalece-se com a proximidade solidária assente no
respeito da autonomia; enfraquece-se com a distância arrogante e a voracidade
do controle.
Reforma política
No Brasil, o atual regime político não permite que se governe de modo
coerente à esquerda. A prioridade da esquerda dever ser a reforma política e
não o regressar ao governo a todo custo ou o mais rápido possível. Não merece a
pena ter ganhos a curto prazo se eles rapidamente se transformam em
perdas de longo prazo. A reforma política pode exigir a convocação de uma
assembleia constituinte originária. Tal exigência terá de enfrentar a poderosa
contra-reforma liderada pelo sistema judicial e pelos mídia. A reforma política
deve ser orientada para permitir uma revolução cultural e social que, a prazo,
a sustente e a defenda da persistente contra-reforma política.
Representações
A reforma política deve ser orientada por três ideias: a democracia
representativa perdeu a capacidade de se defender das forças antidemocráticas;
para que a democracia prevaleça é necessário inventar novas institucionalidades
que permitam articular, nas diferentes escalas de governação, a democracia
representativa e a democracia participativa; em sociedades dominadas por
relações capitalistas, coloniais e patriarcais a democracia, tal como a
esquerda, estão sempre em risco; só uma vigilante economia de cuidado lhes
permite sobreviver e florescer.
Influências
Ao contrário do que aconteceu no tempo em que havia uma separação clara
entre ditadura e democracia, as forças antidemocráticas têm hoje meios de
ganhar influência dentro dos partidos democráticos, inclusive dos que se
designam de esquerda. No atual contexto, são antidemocráticas as forças que
apenas respeitam a democracia na medida em que ela respeita os seus interesses
econômicos ou outros, não admitindo que tais interesses possam ser
reconfigurados ou afetados negativamente em resultado da competição democrática
nomeadamente quando esta procura atender a interesses de outros grupos ou
classes sociais. A debilidade da democracia representativa reside na facilidade
com que hoje minorias sociais se convertem em maiorias políticas e,
paralelamente, na facilidade com que maiorias sociais se convertem em minorias
políticas.
Para além dos partidos
Articular a democracia representativa (os cidadãos elegem os decisores
políticos) com a democracia participativa (os cidadãos e as comunidades
organizam-se para tomar decisões políticas) exigirá uma refundação do sistema
político no seu conjunto (novas instituições) e não apenas do regime politico
(sistema de partidos, sistema eleitoral etc.). Pressupõe que os cidadãos se
possam organizar por outras formas que não os partidos para intervir ativamente
na política, via eleições ou referendos. Pressupõe que os partidos políticos de
esquerda existentes sejam refundados de modo a que eles próprios sejam
internamente organizados por via de articulações entre democracia
representativa e democracia participativa (assembleias e ou círculos de
cidadãos e cidadãs simpatizantes). Esta última deve ter um papel central em
três áreas: definição da agenda política; seleção de candidatos aos orgãos da
democracia representativa; vigilância sobre cumprimento dos termos dos
mandatos. Os novos partidos terão a forma de partido-movimento e saberão viver
com o fato de não terem o monopólio da representação política. Não há cidadãos
despolitizados; há cidadãos que não se deixam politizar pelas formas dominantes
de politização, sejam elas partidos ou movimentos da sociedade civil
organizada. A esmagadora maioria dos cidadãos não tem condições ou interesse
para aderir a partidos ou participar em movimentos. Mas quando vem para a rua
só surpreende as elites políticas que perderam o contato com "as
bases".
Democracias
Dado que a democracia representativa está muito mais consolidada que
a democracia participativa, a articulação entre as duas terá sempre de
ter presente esse desequilíbrio. O pior que pode acontecer à democracia
participativa é ter todos os defeitos da democracia representativa e nenhuma
das suas virtudes.
Capitalismo moderno
A reforma política não vale por si. O seu objetivo é facilitar a
revolução democrática nas relações econômicas, sociais, culturais e
internacionais. Por sua vez, essa revolução tem por objetivo diminuir gradual e
sustentadamente as relações de poder desigual e as consequentes injustiças
provocadas pelas três formas de dominação moderna: capitalismo, colonialismo e
patriarcado. Estas três formas de dominação operam articuladamente. Tanto o
colonialismo como o patriarcado existiram muito antes do capitalismo moderno
mas foram profundamente reconfigurados por este para servir os objetivos da
expansão do capitalismo. O patriarcado foi reconfigurado para desvalorizar o
trabalho das mulheres na família e na reconstituição da força de trabalho.
Apesar de ser um trabalho iminentemente produtivo porque produz a própria vida
e foi falsamente concebido como trabalho reprodutivo. Essa desvalorização
abriu o caminho para a desvalorização do trabalho assalariado das mulheres. O
patriarcado continua vigente apesar de todas as lutas e conquistas dos
movimentos feministas e de mulheres. Por sua vez, o colonialismo, assente na
inferioridade natural de certos grupos humanos, foi crucial para justificar a
pilhagem e a despossessão, o genocídio e a escravatura em que assentou a
chamada acumulação primitiva. Acontece que essa forma de acumulação capitalista
particularmente violenta, longe de corresponder a uma fase do desenvolvimento
capitalista, é um componente constitutivo deste. Por isso, o fim do
colonialismo histórico não significou o fim do colonialismo enquanto forma de
sociabilidade e continua hoje vigente nas formas de colonialismo interno,
discriminação racial, violência policial, trabalho escravo etc. O patriarcado e
o colonialismo são os fatores que alimentam e reproduzem o fascismo social nas
sociedades que o capitalismo vê interessadamente como politicamente
democráticas. Nas condições atuais em que domina a forma mais anti-social de
capitalismo (o capitalismo financeiro), a dominação capitalista mais do que
nunca exige a dominação colonialista e sexista. É por isso que as conquistas
contra a discriminação racial ou sexual são tão prontamente revertidas quando
necessário.
Alma pequena da esquerda
O drama das lutas contra a dominação da época moderna foi o terem-se
centrado numa das formas de dominação negligenciando ou mesmo negando a
existência das outras formas. Assim a esquerda política tem sido, no seu
melhor, anticapitalista, mas quase sempre racista e sexista. Não podemos
esquecer que a social democracia europeia, que permitiu regular o capitalismo e
criar sociedades mais justas através da universalização dos direitos sociais e
econômicos, foi tornada possível pela exploração violenta das colônias
europeias e, mais tarde, pela subordinação neocolonialista do mundo não
europeu. A fragilidade e a reversibilidade das conquistas sociais residem em
que as formas de dominação negadas minam por dentro as conquistas contra a
dominação reconhecida. Assim, uma luta de esquerda orientada para dar um rosto
mais humano ao capitalismo, mas que despreze a existência de racismo, de
colonialismo e de sexismo pode não só causar imenso sofrimento humano
como pode acabar fortalecendo o capitalismo que quis controlar e deixar-se
derrotar ingloriamente por ele. Isto explica em parte que os governos
progressistas da América Latina da última década tenham tão facilmente
minimizado os "danos colaterais" da exploração desenfreada dos
recursos naturais causada pelo consenso das commodities e aparentemente nem se
tenham dado conta que o neo-extrativismo representava a continuidade mais
direta com o colonialismo histórico contra o qual sempre se manifestaram. Tais
danos envolveram a expulsão de camponeses e indígenas das suas terras e
territórios ancestrais, o assassinato de lideres sociais por sicários a mando
de empresários sem escrúpulos e num contexto de total impunidade, expansão da
fronteira agrícola para além de toda a responsabilidade ambiental, o
envenenamento de populações do campo sujeitas à pulverização aérea de
herbicidas e pesticidas, alguns deles proibidos internacionalmente. Tudo isto
aparentemente mereceu a pena apenas porque a alma da esquerda era bem pequena.
Antis
A política de esquerda tem de ser conjuntamente anticapitalista,
anticolonialista e antisexista sob pena de não merecer nenhum destes atributos.
Lutas
Obviamente as diferentes lutas sociais não podem lutar todas contra as
diferentes formas do dominação da mesma maneira e ao mesmo tempo. O fato de as
três formas de dominação não poderem, em geral, reproduzir-se isoladamente umas
das outras não significa que em certos contextos a luta contra uma delas não
esteja mais próxima ou seja mais urgente. O importante é que, por exemplo, ao
conduzir uma luta contra o colonialismo se tenha presente nas bandeiras e
articulações de luta que a dominação colonialista não existe sem a dominação capitalista
e sexista.
Intercultural
A esquerda do futuro tem de ser intercultural e de se organizar
com base na prioridade da articulação das lutas contra as diferentes dominações
como condição necessária da eficácia das lutas. Como as diferentes tradições de
luta criaram as culturas oposicionais específicas (histórias fundadoras,
narrativas e linguagens próprias, bandeiras de luta agregadoras), a articulação
entre lutas/movimentos/organizações envolverá, em maior ou menor medida, algum
trabalho de tradução intercultural.
Dominação da natureza e do conhecimento
A interculturalidade irá introduzir na agenda politica duas formas
dominação-satélite que fornecem ao capitalismo, ao colonialismo e ao
patriarcado, o óleo que lhes permite funcionar com mais legitimidade social: a
dominação da natureza e a dominação causada pelo conhecimento acadêmico
dominante nas nossas universidades e centros de pesquisa. Com isto duas outras
dimensões de injustiça se tornarão visíveis: a injustiça ecológica e a
injustiça cognitiva. Somadas às restantes estas duas formas de injustiça
obrigarão a uma revolução cultural e cognitiva com impacto específico nas
políticas de saúde e de educação. Será então tão possível valorizar os
conhecimentos populares nascidos na luta contra a dominação como deixar de
festejar como heróis da nossa história homens brancos responsáveis por
genocídios, trafico de escravos, roubo de terras. No plano teórico, o marxismo
que continua a ser tão importante para analisar as sociedades do nosso tempo
terá de ser descolonizado e despatriarcalizado para nos poder ajudar a imaginar
e a desejar uma sociedade mais justa e mais digna de que nos está dada a viver
no tempo presente.
O Dr. Boaventura de Sousa Santos é professor da Universidade de Coimbra,
Portugal, e da Universidade de Wisconsin-Madison, EUA. Dirige o projeto de
investigação ALICE - Espelhos estranhos, lições imprevistas. É entusiasta e
participante ativo do Fórum Social Mundial ao longo dos anos, tendo trabalhado
e dialogado com movimentos políticos sociais de todo o planeta, especialmente
da América Latina e outros países do Sul Global.
Matéria de Vitor
Taveira, publicada em especial na Caros Amigos
e reproduzida pelo site da “Raiz movimento cidadanista”, em 05/10/16. Divulgação
Ecos Brasil